Todo caminho é feito da distância percorrida e das pedras – ou seriam letras – que encontramos pela frente em nosso trilhar. Na Psicanálise, Sigmund Freud e Jacques Lacan já tinham percebido e abordado com propriedade essa instância onde a interpretação topa com o seu limite e que aponta para a face real do Inconsciente.
Convidamos psicanalistas, estudantes de psicanálise e outros interessados ao estudo, à escrita de artigos e a estarem conosco na XLIII Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, nos dias 18, 19 e 20 de setembro de 2025 , a ser realizada no Centro de Convenções do Hospital MaterDei, em Belo Horizonte.
O tema da Jornada é “Tinha uma letra no meio do caminho: Inconsciente Real”. Inspirados pela escrita do poeta, perguntamos sobre os desafios da experiência psicanalítica, ao nos confrontarmos com os efeitos da linguagem no corpo, marcas dos significantes causa de gozo, demonstrando a dimensão real do Inconsciente. Afinal, tudo o que é recalcado é Inconsciente, mas o Inconsciente é muito mais amplo do que o recalcado. Há afetos.
Tal como Sísifo em seu trabalho contínuo e inesgotável, estamos nós, seres humanos, submetidos à força da repetição. Repetir, repetir, sem chegar ao cúmulo! Alegoria do absurdo da condição humana, com seus muitos enigmas. Angústia diante do imprevisível, do inexplicável, do que não se pode dominar. Desde tempos imemoriais, do primeiro ser humano ao mais atual somos herdeiros dessa luta.
Tinha uma letra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma letra. Letra que nos constitui e vai marcando o corpo, bordejando os vazios de nossos buracos de delícia e de dor. Letra que não forma linguagem, mas que se inscreve através de lalíngua, com seus chistes, lapsos e atos falhos que, de repente, irrompem. Lalíngua que se mostra no gozo da lalação dos bebês, nas palavras do sonho, nas canções de ninar, nos poemas de amor. Poesia, território livre do desejo, que faz existir o que não há e nos leva a mundos aos quais não estamos condicionados. “Não quero a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível de fazer sentido. Eu não, quero a verdade inventada” (Lispector, 1998).
Letras livres, letras soltas e vadias que escapam na subida da montanha e vão se embaralhando e enovelando em novas configurações. Algo mais além do inconsciente decifrável pela transferência. Algo que leva ao inconsciente real, que é furo, é buraco, é vazio. O inapreensivel. Lá onde nada, tudo aspira a criar-se.
Lispector, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 22.
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Inconsciente Real
Nos últimos anos de seu ensino, a partir de achados clínicos que desvelam cada vez mais a dimensão do gozo, Lacan promove uma série de deslocamentos conceituais: o conceito de sujeito cede lugar ao de parlêtre, a linguagem passa a ser concebida como um derivado de lalíngua e a ideia de sintoma passa a ter um contraponto na figura do sinthome. Ao fim das contas, o próprio conceito de inconsciente é reformulado. Se, nos primeiros anos da obra lacaniana, o inconsciente é “estruturado como uma linguagem”, ele se torna depois – marcadamente a partir do Seminário 20: Mais ainda – o inconsciente que é “um saber-fazer com lalíngua” e o inconsciente que é “o mistério do corpo falante”.
Trata-se, portanto, de um itinerário que vai da centralidade do simbólico à prevalência do real, e é para esse ponto de chegada e suas consequências teórico-clínicas que se voltará nossa atenção nos debates desta XLIII Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Contamos com sua presença e sua participação.
Bernardo Maranhão
Nos últimos anos do ensino de Lacan, o inconsciente é reconsiderado para incluir sua dimensão de real, ou seja, o fora de sentido do gozo do corpo, um gozo que não se reduz ao significante, mas a ele permanece enlaçado. De maneira correlata, a linguagem, correspondente até então à própria estrutura do inconsciente, passa a ser concebida como “elucubração de saber sobre lalíngua” e a concepção de sujeito do inconsciente vem a ser substituída pela de parlêtre, a fim de dar evidência a um falar que enlaça o verbal e o gozo. No mesmo passo, o sintoma deixa de ser tomado apenas como metáfora a ser decifrada e passa a ser encarado como acontecimento de corpo que pode ensejar, por meio da experiência analítica, a constituição de um sinthome, rearranjo pulsional correlato de um bem dizer, pelo próprio sujeito, do modo de gozo que o singulariza.
É precisamente sobre o inconsciente real que versará a edição deste ano das Jornadas do CPMG, e convidamos você a somar a sua voz à polifonia dos debates que serão tecidos nesta oportunidade com grande proveito para todas e todos os participantes.
Bernardo Maranhão
O que quer dizer lalíngua? Não há tradução. É um neologismo criado por Lacan que traz a conjunção dos termos língua e a lalação do bebê. É o termo que se refere à anterioridade da articulação da cadeia de significantes.
“Alíngua serve coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a experiência do inconsciente demonstrou, no que ele é feito de alíngua, essa alíngua que vocês sabem que eu a escrevo numa só palavra, para designar o que é a ocupação de cada um de nós, alíngua dita materna, e não por nada dita assim” (Lacan, Seminário Livro 20: Mais, ainda,1971-73, p.189).
Portanto, não se trata de uma linguagem que obedece a uma gramática linguística. Pelo contrário, lalíngua obedece a uma gramática própria e singular de cada sujeito. Está, por conseguinte, fora do registro simbólico, habita o real e serve ao gozo.
Segundo Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, porém a linguagem não existe desde o começo. Ela é feita de lalíngua que abarca tudo o que o sujeito recebe da língua materna, com os seus equívocos, homofonias, significações investidas de libido, sonoridade, ambiguidades, e paradoxalmente, com os sem-sentidos que vêm embalados por uma musicalidade singular.
Foi através de lalíngua que Lacan chega ao inconsciente real, definindo-o como testemunho de um saber que escapa, em grande parte, ao ser falante. Para além ou aquém daquilo que o ser falante produz como formações do Inconsciente, estão os acontecimentos de corpo, que têm sentido de gozo.
Lacan, define o inconsciente real como o enxame de S1, e é em lalíngua que um significante se destaca como efeito de algo contingencial e se escreve como letra. Um significante mestre que ao se instaurar no ser falante esburaca o corpo e faz borda, marcando o corpo, inscrevendo-se como uma letra que irá localizar o gozo nas zonas erógenas, produzindo um corpo simbólico. Lalíngua impacta o corpo, introduz no corpo um quantum de gozo, produzindo os acontecimentos de corpo.
Os efeitos de lalíngua vão muito além do que o sujeito enuncia, marcam o corpo com afetos que permanecem enigmáticos.
“A linguagem é o que se tenta saber concernente à função de alíngua” (Lacan, Seminário Livro 20: Mais, ainda,1972-73, p.190).
Tendo como referencial teórico os estudos de Freud e Lacan, vamos pensar a constituição do sujeito através do significante. O sujeito, tal como é abordado pela psicanálise, não é da ordem do natural; ele é efeito de linguagem, marcado pelo significante e, ao mesmo tempo, causado pela ausência de objeto, o que o caracteriza como dividido, desejante e pulsional. Na constituição do sujeito, a lógica do significante é esclarecida por meio da alienação e da separação, operações fundantes do sujeito. Essas operações revelam a lógica do significante por diferentes prismas, seja por meio das operações matemáticas de união e interseção, seja pela subversão do cogito de Descartes. No movimento inaugural do sujeito, há a alienação; depois, há um segundo movimento, que salienta no sujeito a tentativa de separação. As operações de alienação e separação, em Psicanálise, podem se articular à castração, ao complexo de Édipo, ao ideal do eu e ao nome do Pai – e até mesmo ao processo de análise. Apesar de cada uma contemplar uma explicação específica, o importante é saber que elas são operações constituintes, que permitem ao sujeito se separar do Outro e se apresentar como um sujeito dividido.
Essas e outras questões serão trabalhadas em nossa Jornada.
Vanessa Campos Santoro
Freud sempre se interessou pela questão do herdado na formação dos sintomas, na constituição do sujeito e na cultura. Desde os primeiros escritos, de 1894, ele tratou a hereditariedade como um dos três fatores etiológicos da neurose. O recalque orgânico foi uma hipótese levantada em alguns de seus textos e trata da passagem da natureza para a cultura, ou seja, da evolução do instinto para a pulsão, que engloba o acesso à linguagem simbólica.
Em Totem e Tabu (1913), Freud ressalta a transmissão da culpa, que foi fundadora da civilização e é parte de nossa constituição subjetiva, em função do assassinato do Pai e sua ambivalência. Em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud faz uma análise mais apurada da herança arcaica. “Aquilo que pode ser operante na vida psíquica de um indivíduo pode incluir não apenas o que ele próprio experimentou, mas também coisas que estão inatamente presentes nele quando de seu nascimento, elementos com uma origem filogenética – uma herança arcaica” (Freud, p. 112).
Nesse texto, Freud indaga sob que condições uma recordação ingressa na herança arcaica e em que circunstâncias pode se tornar ativa. De um lado, temos a transmissão da lei paterna e dos interditos culturais, que permitem a ancoragem do sujeito no campo simbólico, e de outro temos conteúdos inconscientes, cuja apreensão é intangível, mas que se presentificam pela repetição. Freud já dizia na Carta 52 que alguns traços de percepção não são transcritos para o Unbewusste (inconsciente), mas permanecem ligados a uma lei arcaica. São os “fueros”, marcações a nível de Wz que, não sendo adequadamente transcritos, mantêm seu efeito traumático, até que um acontecimento atual desperte e atualize a lembrança.
Toda essa elaboração freudiana é confirmada por essa citação de Lacan, em O Aturdito, ao falar do equívoco. “Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estruturado como uma linguagem, isto é, alíngua que ele habita, está sujeito a equívoco pelo qual cada uma delas se distingue. Uma língua, entre outras, não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela. É o veio em que o real – o único para discurso analítico, a motivar sua saída, o real de que não existe relação sexual – se depositou ao longo das eras ” (LACAN, 1973/2003 p. 492).
Essas e outras instigantes questões serão trabalhadas em nossa Jornada. Venham participar!
Vanessa Campos Santoro
Entrega de resumo: data 25 de julho
O resumo deverá ser limitado ao máximo de 350 palavras; nele devem constar título, nome(s) do(s) autor(es), endereço de e-mail, telefone e o subtema ao qual o trabalho está articulado.
Entrega de trabalhos: data 8 de agosto
Os resumos e trabalhos deverão ser enviados para o e-mail do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais:
E-mail: cpmg@cpmg.org.br
Após a aprovação do resumo, o artigo deve ser encaminhado por e-mail no formato Word, seguindo normas APA (7ª edição). Fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5 entre as linhas, tabulação 2,5 para parágrafo, justificado, formato A4, margem esquerda e superior: 3 cm, margem direita e inferior: 2 cm. Maximo de 5 paginas, sem contar as referências e o resumo.
Necessária a inscrição na jornada do (s) autor (s) para aprovação do artigo.